O Estado: Homossexuais são invisíveis à Justiça

Compatilhar 13/01/2011 por Maria Alice Azevedo Marques Envie seu artigo! Clique aqui!

Desembargadora aponta falhas na legislação e anos de preconceito em relação a grupos excluídos da sociedade

A Desembargadora Maria Berenice Dias tem toda uma carreira marcada pelo pioneirismo. Primeira juíza do estado do Rio Grande do Sul, primeira desembargadora e a única magistrada que preside órgão especial do Tribunal de Justiça, que trata do direito de família. Ela ainda tem como marco na carreira o fato de ter concedido pela primeira vez no país direitos de união estável a parceiros homossexuais.

Berenice lançou esta semana em Florianópolis a segunda edição do livro “União Homossexual – O Preconceito da Justiça”. A primeira edição é de 2001. O livro é o resultado de um trabalho de pesquisa sobre os aspectos jurídicos destas relações. A desembargadora também traz a público um projeto de lei que está para ser votado no Congresso que altera 168 dispositivos do novo Código Civil, antes dele entrar em vigor. Este projeto traz um dispositivo que acaba reconhecendo a união de pessoas do mesmo sexo, mandando que se aplique a legislação da união estável. “Se aprovado e eu espero que seja, teremos uma das legislações mais modernas do mundo” conclui.

O Estado – O que a levou a trabalhar com questões tão polêmicas, norteadas pelo preconceito?
Maria Berenice – Talvez porque tenha sido tão difícil o ingresso na magistratura, o fato de eu ter sido alvo não só de brincadeiras e até tentativas para que não assumisse como juíza, achando que eu deveria usar roupas de gola e de manga. Então foi um tratamento pejorativo, como se não fosse uma função para uma mulher exercer. Talvez isso tenha me sensibilizado para tratar estas questões, como dos homossexuais que são pessoas tão excluídas da sociedade. Acabam não tendo respaldo social e quando não tem este referendo social, acabam sem o referendo legal e judicial. São invisíveis. A Justiça tem uma tendência muito conservadora e isto acaba aumentando a estigmatização que determinado segmento sofre. E eu sofri este problema, talvez por isso eu tenha me identificado e fui trabalhar em varas de família, exatamente para atender este segmento da população. Comecei a me dar conta, que eu como magistrada era discriminada por ser mulher. Mas as mulheres eram discriminadas no julgamento. O tratamento é diferenciado. As mulheres que não correspondem a este modelo de honestidade, de pureza, que cumprem com suas obrigações, que se comportam direito que não andam em bares. Todo um padrão posto e quando ela se afasta disso ela deixa de ser vítima para se transformar em réu. Então quando uma mulher é estuprada, a primeira coisa que se pergunta, onde você estava, como estava vestida, o que você estava fazendo naquele lugar. Então acabam julgando a mulher independentemente de analisar o outro lado. São coisas que sempre me chocaram muito, por exemplo os pais tirarem a guarda dos filhos porque a mãe teria uma maneira de viver, no livre exercício de sua sexualidade, não tem nada a ver no fato dela ser uma boa mãe ou não. São tópicos onde se visualiza esta discriminação contra a mulher.
O Estado – E como surgiu o livro “União Homossexual – O Preconceito da Justiça”?
Maria Berenice – Comecei a estudar os segmentos que a Justiça acaba discriminando e fiquei absolutamente chocada em verificar que os homossexuais são mais discriminados que as mulheres. São alvo de uma exclusão no mínimo cruel. Comecei a pesquisar e a estudar e o que mais me impressionou foi a total ausência de literatura a respeito. Não existia até eu ter lançado este livro, uma obra que tratasse dos aspectos jurídicos das relações homossexuais. Não tinha nem artigo. Fui ver os julgamentos eram totalmente preconceituosos. De situações em que os pais fizeram acordos de regulamentar a visita dos filhos e o juiz sem mais nem menos tirou o direito do pai às visitas ainda que tivesse a concordância da mãe porque o pai era homossexual. Isto é, à testemunha homossexual não se pode dar credibilidade. Nem tem nenhum direito reconhecido, pelo simples fato de ser homossexual e isto foi uma coisa que me chocou muito. Então eu comecei a pesquisar tudo o que havia sido julgado no Brasil sobre homossexuais. Existem meia dúzia de ações de transsexuais buscando alterar o nome. Houve a condenação de um médico que fazia cirurgias de redeterminação sexual. Ele foi condenado por lesão corporal, depois o tribunal acabou absolvendo-o Agora existe uma resolução do Conselho Federal de Medicina dizendo que a cirurgia pode ser feita com acompanhamento psicológico, então já muda com esta chancela no meio médico para Justiça não considerar como lesão corporal. E quando a pessoa consegue fazer por conta própria a cirurgia, chega no tribunal a justiça não troca o nome. A Roberta Close não conseguiu até hoje trocar de nome. Imagina cada vez que vai passar um cheque ou entrar num avião. Quer dizer: onde é que está a dignidade dessas pessoas. Porque quando eles apresentam o documento tem o nome de homem e aí a pessoa tem que se submeter a uma vistoria e aí a situação fica humilhante, jocosa, onde é que vai ser feita esta vistoria no banheiro dos homens ou das mulheres, e quem vai fazer a vistoria um homem ou uma mulher. Nós não podemos mais conviver com isso, nós estamos num mundo mais arejado, mais evoluído, sem barreira, globalizado e existe este estigma injustificado.
O Estado – Como ficam em termos patrimoniais a separação de um casal homossexual?
Maria Berenice – Em termos patrimoniais dessas relações, pessoas que vivem juntas durante muitos anos, e no momento em que um dos dois falece, por exemplo, o patrimônio ou vai para um parente distante que até muitas vezes nunca aceitou aquela pessoa, ou acaba sendo recolhido para uma herança vacante e vai para o município. Onde é que está o censo de Justiça? A tendência é não reconhecer estes relacionamentos como uma família, e não reconhecer a este parceiro nenhum direito.
O Estado – E a questão da Cássia Eller, que a companheira conseguiu na Justiça o direito à guarda do filho?
Maria Berenice – Só porque a mãe da criança era famosa. Porque a sociedade evolui rapidamente; o legislador vem no descompasso, ele vem depois. Há uma dificuldade de se legislar no Brasil, principalmente estes temas permeados de preconceito. O projeto da parceria civil da Marta Suplicy está há sete anos no Congresso e não tem jeito de ir para frente.
O Estado – Mas este precedente no caso Cássia Eller não muda a visão da Justiça sobre o assunto?
Maria Berenice – Não tanto como os precedentes nos Estados Unidos, onde o precedente vira lei, porque lá não existe um sistema legal. Aqui não, aqui chama-se jurisprudência, mas ela não tem aquele caráter vinculante que tem nos Estado Unidos. Aqui os julgamentos dos tribunais sinalizam algumas posições. Acho que o caso da Cássia foi muito significativo. O caso tem componentes que necessariamente desencadearam nesse sentido. Por isso há uma série de coincidências, o menino ficou na única situação que ele podia ficar. A mãe era uma mulher famosa, e a fama sempre faz as pessoas serem aceitas, independente de serem homossexuais, aí é mais fácil de enfrentar. Mas o caso acabou desencadeando um movimento social muito grande para que fosse assegurada a guarda à Maria Eugênia, companheira de Cássia. Isso foi muito positivo. Cada vez mais está se desenvolvendo no âmbito jurídico a idéia de que a gente tem que deixar as crianças com quem elas tem um vínculo afetivo e não vínculo biológico ainda mais agora com estas técnicas modernas de procriação, como é que vamos identificar o vínculo biológico. Temos que ter outro parâmetro para decidir a paternidade. E é o vínculo afetivo que existe com aquele que cria, que dá amor.

Desembargadora aponta falhas na legislação e anos de preconceito em relação a grupos excluídos da sociedade

A Desembargadora Maria Berenice Dias tem toda uma carreira marcada pelo pioneirismo. Primeira juíza do estado do Rio Grande do Sul, primeira desembargadora e a única magistrada que preside órgão especial do Tribunal de Justiça, que trata do direito de família. Ela ainda tem como marco na carreira o fato de ter concedido pela primeira vez no país direitos de união estável a parceiros homossexuais.
Berenice lançou esta semana em Florianópolis a segunda edição do livro “União Homossexual – O Preconceito da Justiça”. A primeira edição é de 2001. O livro é o resultado de um trabalho de pesquisa sobre os aspectos jurídicos destas relações. A desembargadora também traz a público um projeto de lei que está para ser votado no Congresso que altera 168 dispositivos do novo Código Civil, antes dele entrar em vigor. Este projeto traz um dispositivo que acaba reconhecendo a união de pessoas do mesmo sexo, mandando que se aplique a legislação da união estável. “Se aprovado e eu espero que seja, teremos uma das legislações mais modernas do mundo” conclui.

O Estado – O que a levou a trabalhar com questões tão polêmicas, norteadas pelo preconceito?
Maria Berenice – Talvez porque tenha sido tão difícil o ingresso na magistratura, o fato de eu ter sido alvo não só de brincadeiras e até tentativas para que não assumisse como juíza, achando que eu deveria usar roupas de gola e de manga. Então foi um tratamento pejorativo, como se não fosse uma função para uma mulher exercer. Talvez isso tenha me sensibilizado para tratar estas questões, como dos homossexuais que são pessoas tão excluídas da sociedade. Acabam não tendo respaldo social e quando não tem este referendo social, acabam sem o referendo legal e judicial. São invisíveis. A Justiça tem uma tendência muito conservadora e isto acaba aumentando a estigmatização que determinado segmento sofre. E eu sofri este problema, talvez por isso eu tenha me identificado e fui trabalhar em varas de família, exatamente para atender este segmento da população. Comecei a me dar conta, que eu como magistrada era discriminada por ser mulher. Mas as mulheres eram discriminadas no julgamento. O tratamento é diferenciado. As mulheres que não correspondem a este modelo de honestidade, de pureza, que cumprem com suas obrigações, que se comportam direito que não andam em bares. Todo um padrão posto e quando ela se afasta disso ela deixa de ser vítima para se transformar em réu. Então quando uma mulher é estuprada, a primeira coisa que se pergunta, onde você estava, como estava vestida, o que você estava fazendo naquele lugar. Então acabam julgando a mulher independentemente de analisar o outro lado. São coisas que sempre me chocaram muito, por exemplo os pais tirarem a guarda dos filhos porque a mãe teria uma maneira de viver, no livre exercício de sua sexualidade, não tem nada a ver no fato dela ser uma boa mãe ou não. São tópicos onde se visualiza esta discriminação contra a mulher.

O Estado – E como surgiu o livro “União Homossexual – O Preconceito da Justiça”?
Maria Berenice – Comecei a estudar os segmentos que a Justiça acaba discriminando e fiquei absolutamente chocada em verificar que os homossexuais são mais discriminados que as mulheres. São alvo de uma exclusão no mínimo cruel. Comecei a pesquisar e a estudar e o que mais me impressionou foi a total ausência de literatura a respeito. Não existia até eu ter lançado este livro, uma obra que tratasse dos aspectos jurídicos das relações homossexuais. Não tinha nem artigo. Fui ver os julgamentos eram totalmente preconceituosos. De situações em que os pais fizeram acordos de regulamentar a visita dos filhos e o juiz sem mais nem menos tirou o direito do pai às visitas ainda que tivesse a concordância da mãe porque o pai era homossexual. Isto é, à testemunha homossexual não se pode dar credibilidade. Nem tem nenhum direito reconhecido, pelo simples fato de ser homossexual e isto foi uma coisa que me chocou muito. Então eu comecei a pesquisar tudo o que havia sido julgado no Brasil sobre homossexuais. Existem meia dúzia de ações de transsexuais buscando alterar o nome. Houve a condenação de um médico que fazia cirurgias de redeterminação sexual. Ele foi condenado por lesão corporal, depois o tribunal acabou absolvendo-o Agora existe uma resolução do Conselho Federal de Medicina dizendo que a cirurgia pode ser feita com acompanhamento psicológico, então já muda com esta chancela no meio médico para Justiça não considerar como lesão corporal. E quando a pessoa consegue fazer por conta própria a cirurgia, chega no tribunal a justiça não troca o nome. A Roberta Close não conseguiu até hoje trocar de nome. Imagina cada vez que vai passar um cheque ou entrar num avião. Quer dizer: onde é que está a dignidade dessas pessoas. Porque quando eles apresentam o documento tem o nome de homem e aí a pessoa tem que se submeter a uma vistoria e aí a situação fica humilhante, jocosa, onde é que vai ser feita esta vistoria no banheiro dos homens ou das mulheres, e quem vai fazer a vistoria um homem ou uma mulher. Nós não podemos mais conviver com isso, nós estamos num mundo mais arejado, mais evoluído, sem barreira, globalizado e existe este estigma injustificado.

O Estado – Como ficam em termos patrimoniais a separação de um casal homossexual?
Maria Berenice – Em termos patrimoniais dessas relações, pessoas que vivem juntas durante muitos anos, e no momento em que um dos dois falece, por exemplo, o patrimônio ou vai para um parente distante que até muitas vezes nunca aceitou aquela pessoa, ou acaba sendo recolhido para uma herança vacante e vai para o município. Onde é que está o censo de Justiça? A tendência é não reconhecer estes relacionamentos como uma família, e não reconhecer a este parceiro nenhum direito.

O Estado – E a questão da Cássia Eller, que a companheira conseguiu na Justiça o direito à guarda do filho?
Maria Berenice – Só porque a mãe da criança era famosa. Porque a sociedade evolui rapidamente; o legislador vem no descompasso, ele vem depois. Há uma dificuldade de se legislar no Brasil, principalmente estes temas permeados de preconceito. O projeto da parceria civil da Marta Suplicy está há sete anos no Congresso e não tem jeito de ir para frente.

O Estado – Mas este precedente no caso Cássia Eller não muda a visão da Justiça sobre o assunto?
Maria Berenice – Não tanto como os precedentes nos Estados Unidos, onde o precedente vira lei, porque lá não existe um sistema legal. Aqui não, aqui chama-se jurisprudência, mas ela não tem aquele caráter vinculante que tem nos Estado Unidos. Aqui os julgamentos dos tribunais sinalizam algumas posições. Acho que o caso da Cássia foi muito significativo. O caso tem componentes que necessariamente desencadearam nesse sentido. Por isso há uma série de coincidências, o menino ficou na única situação que ele podia ficar. A mãe era uma mulher famosa, e a fama sempre faz as pessoas serem aceitas, independente de serem homossexuais, aí é mais fácil de enfrentar. Mas o caso acabou desencadeando um movimento social muito grande para que fosse assegurada a guarda à Maria Eugênia, companheira de Cássia. Isso foi muito positivo. Cada vez mais está se desenvolvendo no âmbito jurídico a idéia de que a gente tem que deixar as crianças com quem elas tem um vínculo afetivo e não vínculo biológico ainda mais agora com estas técnicas modernas de procriação, como é que vamos identificar o vínculo biológico. Temos que ter outro parâmetro para decidir a paternidade. E é o vínculo afetivo que existe com aquele que cria, que dá amor.

O Estado – E o novo Código Civil não contempla estas relações?
Maria Berenice – Não. O Código Civil que entra em vigor no ano que vem não trata da questão de divisão patrimonial em relações homossexuais. O código já nasce velho, porque tramitou durante 26 anos no Congresso. Ele foi versado antes da lei do divórcio, antes da constituição federal que foi um marco muito importante para os direitos de família, produzindo mudanças muito significativas e esta lei é anterior. Ela foi remendada, mas estes remendos não são a mesma coisa, a estrutura continua preconceituosa e conservadora. E não traz nenhuma regra a respeito de uniões homossexuais. Agora o deputado Ricardo Cury, apresentou um projeto de lei para alterar 168 dispositivos no novo Código antes dele entrar em vigor. Este projeto traz um dispositivo que achei muito interessante ele acaba reconhecendo estas uniões de pessoas do mesmo sexo, mandando que se aplique a legislação da união estável. Se aprovado, e eu espero que seja, teremos uma das legislações mais modernas do mundo. Acho que é necessário que se faça um certo movimento da sociedade para que seja aprovado com esta alteração, para que o legislador não tenha a tendência de rejeitar este dispositivo. Não está se alterando tudo o que deveria mas já é um passo. O dispositivo diz o seguinte: a união de duas pessoas que tenham uma economia comum e uma vivência que não afronte nem a moral e nem os bons costumes, se aplica a legislação da união estável. É um dispositivo até bem redigido e hoje em dia ninguém vai poder dizer que afronta a moral e aos bons costumes duas pessoas do mesmo sexo vivendo juntas.

O Estado – O artigo não especifíca?
Maria Berenice – Não, ele fala apenas de duas pessoas vivendo juntas, por isso achei uma redação feliz. Não é necessariamente para homossexuais mas pode ser aplicado e contemplaria por exemplo, dois irmãos que vivem juntos, na mesma casa, ou duas irmãs solteiras, eu acho que elas formam uma família, e o patrimônio que elas acabam amealhando não têm que dividir com outros irmãos, tem que dividir entre elas, porque elas foram um núcleo familiar, sem nenhuma conotação de caráter sexual. União estável não precisa ter caráter sexual. Porque o que identificava uma família, era uma instituição, pelo casamento para fins procriativos, duas pessoas de sexos diferentes. Hoje em dia com a união estável o casamento não é o elemento caracterizador da família, porque existe família sem casamento, a filiação também não é mais o fator que caracteriza a família, porque existe procriação sem família. Também o sexo não é mais, pois também se faz sexo fora do casamento. Então temos que procurar outro conceito de família, porque este não serve mais. E onde vamos encontrar este conceito: é o vínculo afetivo.

Entrevistador: Zenaide Arouca
Entrevistada: Maria Berenice Dias

Fonte: 06 e 07 de julho de 2002 – O Estado – pág. 03 – Florianópolis-SC



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