A impunidade dos delitos domésticos
Maria Berenice Dias
Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
Palestra proferida no IX Congresso Nacional da Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica, em 27.10.1999, Maceió – AL.
Os Juizados Especiais Criminais, criados pela Lei nº 9.099, de 26/9/95, significaram uma verdadeira revolução no sistema processual penal brasileiro. Uma justiça consensual possibilita a aplicação de pena mesmo antes do oferecimento da acusação e ainda antes da discussão da culpabilidade. As medidas de despenalização, bem como a adoção de um rito sumaríssimo, buscam a agilização no julgamento dos delitos de pequena potencialidade ofensiva, levando ao desafogamento da Justiça comum. Uma maior celeridade na tramitação das ações – impedindo, por conseqüência, a ocorrência de prescrição – empresta uma maior credibilidade ao Poder Judiciário.
Ainda que se tenha de reconhecer que se trata de uma consciente tentativa de acabar com a impunidade – vista como a causa maior da criminalidade -, deixou de ser priorizada a pessoa humana, e preserva de da vida e sua integridade física. Ao condicionar à representação a ação penal relativa às lesões corporais leves e lesões culposas, omite-se o Estado de sua obrigação de punir. Transmite à vítima a iniciativa de buscar a apenação de seu agressor, segundo critério subjetivo de conveniência. Passaram a ser consideradas como infrações menores as que afetam o cidadão, mas continua o monopólio estatal para punir os delitos contra o patrimônio, pois estes ainda persistem desencadeando ação pública incondicionada.
Há, no entanto, que atentar nas hipóteses em que existe um desequilíbrio entre agressor e agredido, uma hierarquização entre ambos. A punição, nesses casos, certamente não ocorre, pois não há como exigir que o desprotegido, o hipossuficiente, o subalterno venha a formalizar queixa contra o seu agressor. Dentro dessa categoria não se pode deixar de enquadrar a mulher, a criança e o adolescente, pois os delitos contra eles, em sua maciça maioria, são praticados por maridos, companheiros ou pais, ou seja, pessoas com quem convivem e mantêm uma relação de afeto.
Apesar de a igualdade entre os sexos estar ressaltada enfaticamente na Constituição Federal, é secular a discriminação que coloca a mulher em uma posição de inferioridade e subordinação com relação ao homem.
Ainda que não caiba uma análise mais aprofundada sobre as causas de o amor gerar dor, inquestionável que a ideologia patriarcal ainda subsiste. O homem se considera proprietário do corpo e da vontade da mulher e dos seus filhos. Essa equivocada consciência de uma relação de poder é que assegura o suposto direito de o macho fazer uso de sua superioridade corporal e força física sobre a fêmea.
O medo, a dependência econômica, o sentimento de inferioridade, a baixa auto-estima, decorrentes da ausência de pontos de realização pessoais, sempre impuseram à mulher a lei do silêncio. Raros os casos em que se encorajava a revelar a agressão ocorrida dentro do lar, mas isso bastava para o desencadeamento da ação penal.
A criação das Delegacias da Mulher desempenhou um importante papel, pois o atendimento especializado, feito na maioria das vezes por mulheres, visa a estimular as vítimas a denunciar os maus-tratos sofridos, muitas vezes ao longo de anos. De outro lado, o fato de os agressores serem chamados perante a autoridade policial cumpria uma função intimidatória, além de levar à instauração do inquérito e ao desencadeamento automático da ação penal, ainda que a reconciliação do casal ensejasse a tentativa de “retirar a queixa”.
Mesmo não se encontrando justificativa para o baixo índice de condenações – como se a Justiça considerasse delito de menor lesividade o praticado dentro do lar -, ao menos era criminalizada a violência doméstica. Porém, no momento em que havia começado o Judiciário a reconhecer que a absolvição, sistematicamente levada a efeito para garantir a harmonia familiar, tinha efeito contrário, os Juizados Especiais Criminais vieram, infelizmente, consagrar a impunidade.
A nova lei, além de haver esvaziado as Delegacias da Mulher – que agora se limitam a lavrar um termo circunstanciado -, está, sem sombra de dúvida, dificultando o desencadeamento da ação e a apenação nos chamados delitos domésticos.
Impõe dita lei a realização de audiência preliminar, com a presença do autor do fato e da vítima. A conciliação, que imperiosamente tem de ser proposta, enseja simples composição de danos, a ser executada no juízo cível. Não obtida a conciliação, há o direito de exercer a representação, verbalizada, no entanto, na presença do agressor. Mais: feita a representação, pode o Ministério Público transacionar a aplicação de multa ou pena restritiva de direitos, que, se aceita pela infrator, não enseja a reincidência, não consta da certidão de antecedentes e não tem efeitos civis. Trata-se de uma verdadeira transação penal, da qual a vítima não participa.
Esse contexto está contribuindo para que se chegue a um alarmante nível de violência, que só agora vem despertando a atenção de todos.
Assim, não se pode deixar de concluir que a lei veio na contramão da história. Ao desburocratizar a Justiça criminal, acabou mais uma vez por sacrificar a mulher.
A desproporção, quer física, quer de valoração social, entre o gênero masculino e feminino, necessita ser ressaltada, para que se dimensione o crime doméstico como hediondo, merecedor da execração social.
Necessário lembrar que o Direito Penal tem uma função simbólica, não centrada só no castigo, mas na demonstração da intolerância social com relação a determinado ato, que passa a ser repudiado mediante sua criminalização. É mister que a condenação seja exemplar e que se cunhe uma nova consciência, na busca do efeito positivo da apenação e reconhecimento de novos valores.
Os operadores do Direito devem se conscientizar de que os delitos domésticos necessitam de um tratamento diferenciado. Mister que sejam criados juizados especializados, a serem compostos por juízes, representantes do Ministério Público, conciliadores e defensores públicos devidamente preparados para o julgamento dessa espécie de delito. É imperioso, igualmente, que seja montada uma estrutura, para que o casal tenha atendimento psicológico e acompanhamento por assistentes sociais. É importante que as medidas restritivas de direito sejam de molde a propiciar uma mudança de comportamento daquele que pratica o crime sem entender o caráter criminoso de seu agir.
Urge que se revogue o art. 88 da Lei nº 9.099/95, para que volte o Estado a cumprir seu papel. Ao menos, se dispense a representação nos delitos perpetrados no âmbito doméstico. Talvez mais salutar, fosse afastar do âmbito de competência dos Juizados Especiais Criminais o seu julgamento.
(Artigo publicado no Repertório IOB de Jurisprudência, nº 4/98, 2ª quinzena de fevereiro de 1998 e no Jornal Diário de Jacareí, Jacareí – SP, 05/11/2003, p. 02).